16 Jan 2023

Tornar ao espanto

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O sujeito sabe que deseja, mas não sabe o que deseja, o desejo é a forma de existência de um sujeito que é em si mesmo falta.

Tornemos ao espanto. Se virmos bem, ele é feito de visitação e de surpresa. Espantamo-nos pela manifestação de alguma coisa que nos visita, mas não como mera ocorrência: essa surpreende-nos, tem uma luminosidade que nos atinge, que nos apanha desprevenidos, que (misteriosamente, como dizia Aristóteles) estabelece connosco um encontro.

Entre o mundo como aporia e o mundo como encontro, dá-se a surpresa. É como se se abrisse uma entrada até então desconhecida, e o que aparece tivesse o poder de se reconfigurar a direcção habitual das coisas, implicando o nosso olhar. Na experiência do espanto somos atravessados, a surpresa atravessa-nos, pois não se trata tanto de um evento surpreendente quanto do facto de se ser surpreendido.

Disso fala, por exemplo, um texto de Adília Lopes. Diz o seguinte: “Lembro-me com gosto do laboratório de química do Liceu Pedro Nunes. Lembro-me da reacção do sódio com a água, liberta uma luz amarela. A reação do Potássio com a água liberta uma luz violeta. Tinha um colega, o Pinto, que dizia: ” Isto para a Maria José é melhor do que ir ao cinema”. A surpresa é isso. Não é apenas o registo de uma reação que se dá exteriormente. É uma revelação que deflagra em nós uma espécie de luz. Inesperadamente uma coisa surge como nunca antes a havíamos visto.

Assim a lemos, pelo menos, alcançando um estádio de consciência novo, não só sobre o agente da revelação , mas também acerca de nós mesmos. O espanto constitui uma rotura com o quadro ordinário e rotineiro em que funcionámos, e face ao qual nos tornámos indiferentes. Basta-nos, contudo, esse instante de graça para intuirmos a possibilidade de uma relação mais profunda e prodigiosa com o real.

Uma coisa fique clara: o espanto liga-se ao desejo, não às necessidades. Caímos frequentemente na tentação de pensar que necessidades e desejos talvez não sejam argumentos diferentes, já que refletem a mesma experiência: a da falta. Porém, entre ambos, como explicou Jacques Lacan, existe uma diferença insuperável: ” é que o desejo não tem objeto”. A posse de um objeto satisfaz uma necessidade, mas o desejo é de outra ordem. O sujeito sabe que deseja, mas não sabe o que deseja. O desejo é uma forma de existência de um sujeito que é em si mesmo falta.

Emerge em nós como perceção profunda de que somos lacuna (ou, na precisa definição de Lacan, de que somos um “aparato lacunar”). Por isso, mais do que oferecer-nos uma flecha, o desejo destapa em nós uma ferida. É uma força que atua por esvaziamento. O desejo desarma-nos primeiro para que possa acontecer o espanto.

Como naquela história contada pela antropóloga americana Ruth Benedict sobre os índigos da ilha de Vancouver, que organizavam entre si diversas provas para aferir quem possuía a verdadeira grandeza. E a competição consistia num exercício que pode parecer brutal: a alienação dos próprios bens. os índios lançavam ao fogo os seus barcos, dispersavam por terra o seu azeite de peixe ou os vasos com as ovas de salmão, do cimo de um promontório e atiravam ao mar mantas e tendas. Vencia aquele que se despojasse de mais coisas.

Tinham razão os índios: o desejo devolve-nos a uma nudez propedêutica. Sem ela, a nossa vida não estremeceria (e não se transformaria) pela experiência do espanto. No entanto descobrimo-nos desprovidos diante daquilo que nos alcança, daquilo que nos investe diretamente e nos responsabiliza pela unicidade do nosso próprio ser. Mas, deste modo paradoxal, tornamo-nos capazes de enfrentar a pergunta sobre o que significa para nós viver.

José Tolentino de Mendonça,

“Que coisas são as nuvens”, Expresso 16/06/22